O mesmo Wesenbeck descreve os flacianos nos seguintes termos:
"Eles desejam excluir da ceia um imenso número de pessoas, chegaram a ameaçar meu jardineiro com uma vara de marmelo e disseram que seria excomungado.
Eles gritam a todo instante: Igreja, Igreja, Igreja; doutrina, doutrina e verdade... no entanto o que querem na verdade é exercer dominação e por seu jugo sobre os demais; EMBORA ELES MESMOS VIVAM COMO ÍMPIOS E SIBARITAS.
É FÁCIL VER POR SEUS ESCRITOS E SUA CONDUTA QUE NELES NÃO HÁ UMA ÚNICA FIBRA DO SER QUE NÃO SEJA PLENAMENTE MÁ."
O que é confirmado pelo depoimento de Ritter:
"O Duque acusou Flacius de desejar estabelecer uma nova inquisição muito pior que a espanhola e um novo papado em seu próprio benefício; assim ele parece imaginar, a semelhança de Wigand, que a igreja sustida por si e por seus companheiros." Salig III, 586 cog Germ 1318 fl 129
De fato Filmmer de Strasbourg, dentre outros, admitia sem maiores problemas que a igreja de Lutero estava reduzida "A um só homem, Flacius, e sua família."
Claro que no fundo no fundo toda essa questão em torno da vontade humana não era mais do que a ponta de dois imensos Icebergs representados pelo fatalismo - enquanto derradeiro corolário da doutrina agostiniano/gracista - e do moralismo natural ou do juridicialismo fundamentado na livre vontade. De modo que havia uma contradição irredutível entre a nova fé e a prática social i é entre a doutrina e a vida.
Afinal como esperar que um homem plenamente convencido de sua eleição graciosa resistisse até o pecado, ao vício ou ao crime até a 'morte', como os antigos mártires, que faziam a salvação depender da perseverança final face as ameaças e não de um decreto eterno.
Por outro lado como punir alguém que era constrangido por deus ou pelo diabo a cometer seus crimes? Como respaldar a doutrina jurídica da responsabilidade moral ou da culpa sem partir da livre iniciativa? A que título seria possível castigar alguém que estava predestinado a pecar desde toda eternidade e que nada podia fazer para evita-lo???
Evidentemente que os juízes e líderes políticos ficaram bastante preocupados na medida em que só podiam deduzir um inevitável relaxamento moral. Por isso os príncipes e seus assessores i é a gente da lei, malquistaram desde o primeiro momento com a teoria do arbítrio escravo embora a princípio tenham-na encarado como questiúncula teológica...
Todavia é bastante certo que algumas décadas depois Lutero teria sua obra predileta interditada e proibida pelo principado secular a semelhança de uma publicação pornográfica. E nem permitiriam os príncipes, juristas e educadores que fosse posta nas mãos dos jovens de das crianças sob pena de viciar-lhes a educação.
A pretexto da religiosidade no entanto pode tal obra ser publicada devido a nascente falta de habilidade do poder secular para lidar com tais questões e disto resultou tanto a degradação dos costumes quanto uma batalha teológica de amplas proporções que consumiu as energias da república.
Outro aspecto da questão a ser considerado é que em que pese o fanatismo com que anunciava a doutrina da predestinacionismo Lutero - Cuja linguagem ainda era bastante medieval - não ousou cunhar uma terminologia condizente com ela de modo a exprimir com máxima exatidão a sua 'fé'...
Sendo assim pode conceituar que o homem não passava dum verme imundo ou dum pedaço de merda, que era um eterno fracassado, que nele nada havia de digno e bom, que sua natureza havia sido completamente corrompida pelo pecado, que era um ser maldito e depravado, que seu próprio ser não passava de pecado, que o pecado fora incorporado a suma natureza, etc Mas não fez questão de expressar tais crenças 'ipsa verba', de modo que não pudessem receber qualquer outra interpretação ou virem a ser distorcidas.
Assim o caso das principais doutrinas sempre cridas desde os tempos apostólicos antes das definições conciliares promulgadas pela igreja em termos de linguagem ou expressão. De modo a que doravante não mais pudessem ser burladas.
Assim faz-se necessário ler de 'capa a capa' ou 'ponta a ponta' o arbítrio escravo para compreender que de fato, para ele, a relação: homem = pecado, equivale de fato e uma operação matemática ou a uma equação...
Foi a Flacius - que coube a 'honrosa' tarefa de explicitar ad verba ou de dar expressão técnico literária ao pensamento de seu mestre, asseverando que após o pecado original a substância mesma do homem convertera-se em pecado. E FOI ESTA PALAVRINHA 'SUBSTÂNCIA' QUE COMO O HOMOOUSIUS OU O FILIOQUE CONVERTEU A QUERELA EM BATALHA OU GUERRA...
Wigand, Heshusius e Andraeas - que não podem ser classificados como moderados - condenaram imediatamente como ímpia a expressão e suplicaram a Marbach que o expulsasse de Strasbourg. Já o princípe de Anhalt afastara-o de suas terras, enquanto Osiandro vedara sua entrada da Prússia...
Pffefinger e os seus - com as bençãos do agonizante Melanchton - opuseram o termo 'Acidente' em oposição a 'substância' e desde então, os oponentes passaram a ser conhecidos por acidentalistas e substancialistas.
"Andraeas mesmo veio a Strasbourg debater com Flacius e exigir que este se retrata-se... Flacius prometeu renunciar ao termo substância, recusou-se no entanto, obstinadamente a reconhecer o uso do termo acidente. DESDE ENTÃO FOI TIDO PELOS LUTERANOS MODERADOS COMO MANIQUEU... ACOSSADO FLACIUS ENVIOU A MARBACH UM PANFLETO INTITULADO 'O ANJO DAS TREVAS' EM QUE DESCREVIA SEUS ADVERSÁRIOS - PFEFFINGER, WIGAND, HESHUSIUS E ANDRAEAS - COMO DEFENSORES DE UMA <ABOMINAÇÃO PAPISTA SEMPRE COMBATIDA POR NOSSO EVANGÉLICO REFORMADOR.>"
Diante de 'tamanha insolência' Andraeas, azedo, replicou:
"No tempo dos papistas havia um só Diabo no corpo da Igreja OS FLACIANOS TROUXERAM OUTROS SETE."
Sendo completado do Stammichius: "Sim, de fato os flacianos estão possuidos pelos piores demônios maniqueistas..."
Eis como se exprime o cronista:
"Destarte até mesmo aqueles que haviam sentido que suas palavras haviam sido ditadas pelo 'ardor da polêmica' não puderam mais por em dúvida o real significado de seus ensinamentos; e fixou-se a divisão entre acidentalistas e substancialistas. A maior parte deles continuou a crer que tudo quanto havia de bom e digno no homem fora destruido pelo pecado, asseverando porém que a doutrina de Flacius a respeito da conversão do pecado na substância mesma do homem era uma doutrina maniquéia. Flacius em suas defesas e apologias nada fazia além de apelar a autoridade de Lutero, e em observar que O PATRIARCA DA REFORMA HAVIA ENSINADO IGUALMENTE A TOTAL ALTERAÇÃO DA NATUREZA HUMANA POR EFEITO DO PECADO ORIGINAL. Destarte eu, Flacius, limitou-me a repetir o que ouvi e aprendi: 'VOSSA NATUREZA, VOSSO NASCIMENTO, TODO VOSSO SER INTEIRO É PECADO.""
Eis agora como um observador papista descreveu a curiosa situação:
"A doutrina tão energicamente defendida pelos ilírico, é certamente a mesma que havia sido proposta por Lutero com as seguintes palavras no seguinte passo: 'O PECADO ORIGINAL NÃO É UM SIMPLES ACIDENTE MAS A SUBSTÂNCIA MESMA DO HOMEM.' esta doutrina foi professada por Spangemberg e pela maior parte dos pastores de Mansfeld; Hieronimus Mencel, superintendente de Eisleben asseverou não haver qualquer diferença entre o pecado e a natureza corrompida do homem e seu diácono Andraeas Fabritius a todos opunha 'As palavras claras e positivas de nosso Lutero, que lançou sobre a partícula acidente os mais espantosos anátemas'."
Entrementes Winike, diácono de Spangenberg, interrogava cada penitente sobre a doutrina do pecado original e recusava-se a absolver a tantos quantos não subscrevessem a doutrina de Flacius.
Um catecismo infantil (!!!) chegou a ser editado com o objetivo de cooptar as criancinhas da Vila e o próprio Spangemberg ensinava as lavadeiras sobre como deveriam fazer para conquistar seus maridos para o partido... e com tal zelo exercia seu apostolado que "Nos campos e ruas as pessoas perguntavam umas as outras antes de se saudarem: Sois do acidente ou da substância??? E recusavam-se a travar qualquer tipo de conversação com as que eram da opinião oposta."
Filipistas e moderados por outro lado não eram mais comedidos, uma vez que não cessavam de descrever os pregadores do partido oposto como Maniqueus, idumeus, filisteus, e possessos, e açulavam com tal fúria seus ouvintes que os condes acharam por bem proibir que ambas as facções corressem a pedradas os pastores da facção alheia.
E quando Wigand, apoiado pelos juristas; cooptou Mencel e a maior parte de seus subordinados, Spangemberg teve a audácia de vir em pessoa a Eisleben para tomar assento em S Pedro e condenar em face os vis traidores. Mandou além disto fixar em cada esquina da Vila uma profissão de fé substancialista composta por si mesmo, e fe-lo com um tal zelo que em Mansfeld até mesmo as mulheres do povo e as crianças de peito sabiam de cor os ensinamentos e sentenças de Lutero a respeito do pecado original, para a vergonha dos filipistas e moderados...
Assim enquanto Flacius era corrido de cidade em cidade sua doutrina obtinha aderentes em diversas partes da Alemanha e lançava os cidadãos uns contra os outros e todo pais - para o desespero dos papistas e dos humanistas - num mar de sangue... Pois é do fanatismo, especialmente quando associado ao pode temporal, destruir a paz e a prosperidade das repúblicas e converte-las em açougues a céu aberto.
(Esta é a razão porque César não deve usurpar o que pertence a Deus e menos ainda os elderes usurpar o poder que dado foi ao César. E esta é a única garantia da paz e da felicidade temporais!)
Foi quando Bartholomeus Wagner de Schoenbourg, com o apoio do conde Wolf "RESOLVEU ENVIAR A AUGUSTO, ELEITOR DE SAXE; UMA PROFISSÃO DE FÉ FLACIANA; ASSIM QUE RECEBEU-A DETERMINOU-SE AQUELE ELEITOR A INVADIR AQUELE PRINCIPADO, ENCADEAR O CONDE - QUE ACABOU MORRENDO DE DESGOSTO NA PRISÃO - E FAZER CAÇAR COMO BESTAS FEROZES A BARTHOLOMEUS E A TODOS OS SEUS PARTIDÁRIOS."
Cerca de 1575 o grande eleitor chegou as portas da infeliz Mansfeld decidido a expurga-la do veneno flaciano custasse o que custasse. Quanto aos recusantes tratou-os segundo os costumes do tempo... assim sendo o professor Martin Wagner após ter sido golpeado, na cabeça, com o punho duma espada veio a perecer. Além disto outros trinta e cinco burgueses ficaram feridos, outros foram exilados e outros tantos punidos com a privação da sepultura.
Aqui convém reproduzir a relação escrita pelo próprio Spangenberg:
"Por ocasião da 'maldita partícula do acidente.' Mencel e seus apaniguados entraram no templo munidos de porretes, varapaus, sabres e armas de fogo e começaram a forçar os fiéis a retratação; os recusantes foram logo postos a ferro e com as mãos atadas passaram a ser torturados, e com Martim Wagner fizeram tudo quanto quiseram até que entregou sua alma. Eu não exito em aplicar a tais bandidos as palavras do Dr Jacobus: 'Os falsos mestres são facilmente reconhecidos pelo habito de apelar a violência com o objetivo de impor suas doutrinas.'." in 'Bericht von Weimar...' 1577
Consta que o próprio Spangenberg só pode escapar a sanha dos filipistas e trajado de mulher. p 266 O que para nossos sectários e judaizantes corresponde a uma infâmia ou maldição.
Assim 'o deus' trata os fanáticos e presunçosos, e arrogantes que pretendem dominar a todos os demais por meio da fé. E apesar de falarem tanto em milagres ficam completamente desamparados a exemplo de Zwinglio, de Cramner, de Cromwell ou deste Wagner.