protestante: Gostaria
de obter ma
iores detalhes sobre a formulação da teologia romana e da
convivência entre Agostinianismo e Semi pelagianismo na igreja latina durante a
Idade Média.
ortodoxo: Uma solicitação excelente a tua. Tão excelente que poucos teólogos romanos seriam capazes de responde-la com propriedade ou com sinceridade.
De minha parte, desejando ir de encontro a tua solicitação, tomarei como ponto de partida a afirmação de Loofs segundo a qual: "A História do Catolicismo romano é uma história de eliminação progressiva do Agostinianismo." Estudos sobre a História dos dogmas p 196
Tomo tal afirmação por verdadeira caso consideremos que a Igreja romana poliu as
arestas do agostinianismo ou suavizou-o, recusando-se a canoniza-lo como
um todo. Mas como falsa, caso consideremos que o agostinianismo foi de fato, ao menos em parte, incorporado a teologia eclesiástica italiana e jamais
condenado em sua expressão mais rigorosa.
Basta dizer que a doutrina papista concernente ao pecado
original - da transmissão da culpa adâmica - foi tomada a Agostinho e
que não poucas vezes tem sido apresentada num sentido protestante i é
de corrupção total, ao menos pelos agostinianos estritos cujas opiniões
jamais foram oficialmente repudiadas.
De modo geral
podemos defini-la com um potencial estado de tensão ou de conflito entre
as partes mais extremas (se bem que o semi pelagianismo não seja um
extremo em sentido absoluto, apenas um extremo permitido - o extremo
absoluto é o naturalismo pelagiano, alias completamente desconhecido pelos antigos) e uma ocasional busca de
conciliações por parte dos elementos mais moderados, aqui a matriz da teologia romana. De
modo que podemos falar em espaços e períodos em que prevaleceu o
agostinianismo e ao menos em mestres e doutores que professaram o semi
pelagianismo, ao menos até Trento; além de momentos em que houve um atrito ou conflito aberto.
Podemos declarar ainda que durante toda a idade média a antropologia e soteriologia romanas COMPORTARAM AS DUAS VERTENTES tendo
o agostiniano sido assumido primeiramente por parte do clero galicano e
em seguida pelos franciscanos numa dimensão que vai do calvinismo ao
arminianismo e tomismo. Já o semi pelagianismo ancestral foi mantido
aqui e acolá pelos teólogos mais esclarecidos retomando sua força na
Itália dos séculos XIV e XV.
Após a reforma porém,
quando o agostinianismo foi guindado a categoria de DOGMA pelos
reformadores, viu-se a igreja romana obrigada a decidir a questão e a
formular um discurso mais ou menos uniforme e coerente.
Entrementes Agostinho de Hipona (Apesar dos inumeros erros aludidos por S Crisóstomo, S Teodoro, S Fócio e
outros tantos Bispos orientais) havia adquirido há séculos o status de
doutor supremo e inquestionável entre os latinos (O qual na verdade foi o
primeiro 'Papa' deles, seguido por Bernardo de Clairvoux), preconceito
ainda hoje sustentado por seus teólogos e doutores...
Em Roma não era possível dialogar com Agostinho e
ela jamais logrou desvencilhar-se por completo dele ou mesmo abater
os agostinianos fiéis. Formulou uma teologia mista ou uma solução de compromisso para os que
não queriam ser agostinianos.
protestante: Quais as evidências a respeito do suposto conteúdo semi-pelagiano presente na igreja romana?
Ortodoxo: A
principio nem mesmo podemos falar em Igreja romana. Seria anacrônico
pelo simples fato de que o poder do papado ainda não se havia afirmado
por toda Europa Ocidental e o próprio sínodo presidido por Aureliano de Cartago em 418 - o mesmo que condenou Pelágio e
canonizou a doutrina da transferência da culpa entre os africanos -
condenou as apelações 'sobre o mar' i é a Roma, declarando que todas as
questões doutrinais ou pastorais fossem decididas pelo metropolita
cartaginês.
Portanto, até 1.100 ao menos, prenda-mo-nos a expressão igreja Ocidental o que evidentemente engloba a igreja romana.
protestante: Correto
Ortodoxo: E reportemos sempre que possível ao próprio Agostinho. O
qual, a princípio admitia com a tradição comum da Igreja a existência
de um Estado ou lugar intermediário para as crianças que morriam sem
Batismo. Doutrina que posteriormente condenou como pelagiana, por ser
incompatível com suas novas descobertas ou constatações. Ja nos referimos a este aspecto de sua doutrina ou a essa fase, e agora vamos desenvolve-lo.
Agora como chegou até elas?
Toda
sua teologia da graça ou gracista ao invés de ser fruto de uma Reflexão
teológica ponderada e serena foi fruto de uma disputa amarga, infeliz e
passional primeiramente com o bretão Pelágio e posteriormente com os semi pelagianos Celestius e Juliano, o santo e erudito Bispo de Aeclanum. O que até certo ponto nos lembra a disputa de Lutero com Eckius. Portanto ambas as doutrinas, a agostiniana e a luterana, foram forjadas irrefletidamente ou de improviso, sem que suas consequências ou ilações fossem consideradas por seus respectivos autores.Sem que Agostinho se desse conta, acabou, ao fim do curso percorrido, elaborando uma doutrina que de modo algum se encaixava na doutrina corrente da igreja. Assim Lutero mil anos depois.
A polêmica com Pelágio foi até certo ponto sóbria e moderada. Tampouco Celestius estava a altura da erudição do Bispo de Hipona.
Assim as coisas só tomaram outro rumo nos derradeiros anos da vida de Agostinho quando teve de vir a liça com Juliano homem versado tanto em grego quanto na lógica formal de Aristóteles ou seja, na arte da argumentação. Ora Agostinho tinha uma certo conhecimento a propósito de Platão mas sabia muito pouco a respeito de Aristóteles e seu método disputativo. Sua deficiência em termos de grego e portanto em torno do original inspirado dos Evangelhos era também notória e Juliano superava-o em amboD
Diante disto o Bispo de Aeclanum optou tomar os elementos da doutrina aventada por Agostinho e
submete-los a 'redução ao absurdo', julgando que tal procedimento haveria de chocar o Bispo de Hipona e faze-lo refletir sobre suas
exagerações.
Diante disto foi tomando friamente as causas postas pelo
Hiponense e sacando as mais monstruosas conclusões. E qual não foi sua
surpresa ao ver Agostinho assumindo as consequências de
seus ensinamentos, tomando a via irracionalista, declarando que era assim mesmo, arrematando numa
perspectiva quase Luterana: "Quem es tu homem para contender com Deus???" e alegando que a justiça de deus não era injusta mas apenas incompreensível para o homem ou misteriosa. Desde então principiou a repetir a palavra Mistério como uma espécie de mantra ou de 'bicho papão' destinado a assustar seus contendores.
Diante disto seus próprios conterrâneos indignados, chefiados por Vitalis de Cartago, classificaram
seus ensinamentos como imorais e declararam que a vontade era apta para
abraçar a fé e aderir a divina Revelação segundo a tradição imemorial da Igreja. E
acrescentaram ainda que a doutrina da graça preveniente não passava duma
novidade tomada a acadêmia de Platão.
Vitalis reafirmou a doutrina de sempre e disse que "Não havia qualquer outra graça preveniente ou anterior ALÉM DO OFÍCIO DA IGREJA OU DE SUA PREGAÇÃO."
Agostinho, com a arrogância que lhe era própria, limitou-se a
declarar que o ofício e testemunho externo da Igreja não era suficiente e
assim rejeitou que a estrutura da Igreja fosse uma graça em si mesma!
Buscando graças mágicas e fantásticas aos pés de Plotino... Em certo sentido ele começara a pugnar contra a dignidade da Igreja e sua missão.
Pouco tempo depois, a leitura de sua carta predestinacionista - dedicada ao então sacerdote romano e futuro Papa Sixto III - pelos
monges de Hadrumeto produziu uma segunda rebelião serenada a muito
custo. Foi justamente com o objetivo de aplacar a cólera dos monges que Agostinho teve de formular bastante claramente a doutrina da reativação da vontade livre dos eleitos após a conversão.
Entrementes os bárbaros Vândalos cercaram Hipo Regius e Agostinho já idoso e combalido veio a morrer socorrendo o pobre povo. Pelo que tem sido tido em conta de Bem aventurado - ou santo de segunda classe - mesmo por S Fócio e
não seremos nós que haveremos de julga-lo ou deixar de aplaudi-lo
quando procedeu bem e soube ser melhor do que sua doutrina. Nós
não podemos julgar os homens, veda-nos a Lei suprema do Evangelho e por
isso nos limitamos a julgar seus ensinamentos e doutrinas, uma vez que o
próprio Agostinho polemizou ele mesmo com os mortos, apontando seus erros.
Antes disto convém acrescentar que Pelágio tendo sido citado pelos Bispos de Lydda apresentou-se em Dióspolis onde
dizem ter falseado suas doutrinas e ter obtido a absolvição por parte
dos hierarcas. Este ponto é muito importante porque quando os latinos
declaram que Pelágio retratou-se ou ocultou seus ensinamentos INSINUAM nas entrelinhas que ele Pelágio,
ASSUMIU UMA PERSPECTIVA GRACISTA OU AGOSTINIANA com o objetivo de ser
absolvido. ORA ESTA SUPOSIÇÃO É ABSOLUTAMENTE FALSA.
Na
própria Enciclopédia Católica vemos Pelágio ASSUMINDO A PERSPECTIVA
SEMI PELAGIANA e afirmando que a IMPECABILIDADE DO HOMEM CRISTÃO OU
CONVERTIDO se dava por colaboração entre a vontade livre e a graça ou
ajuda divina. ORA O ENSINO DA IMPECABILIDADE É FORMALMENTE REPUDIADO POR
TODOS OS AGOSTINIANOS E OCIDENTAIS MODERNOS. FOI NO ENTANTO APROVADO E
SANCIONADO COMO ORTODOXO PELOS BISPOS GREGOS DE DIÓSPOLIS CONSOANTE A
TRADIÇÃO DA IGREJA ORIENTAL, COMO HAVERIA DE SER FORMALMENTE SUSTENTADO POR TEODORO, O COMENTÁRISTA.
Da mesma maneira neste mesmo ano de 417 o odiado Pelágio foi a Roma e - segundo a Enciclopédia Católica (verbete Pelágio) - apresentou ao Papa Zózimos - QUE ERA GREGO!!! - uma
obra sobre o Livre Arbítrio e uma Profissão de fé submetendo-as a um
juízo doutrinal (PELO SIMPLES FATO DE CONTEREM ELEMENTOS DA FÉ!!!). O
resultado disto foi que Zosimus enviou duas cartas (Migne XLV 1719) em que reconhecia a conformidade dos ensinamentos de Pelágio com a Verdade Católica.
Ainda aqui, como sempre, insinuam os teólogos romanos, que Pelágio e Celestius haviam
ocultado suas crenças e afetado outras, mas se afetaram não foram
AGOSTINIANAS ou GRACISTAS, mas certamente SEMI PELAGIANAS. Pelo que fica
evidentemente condenado o suposto ou imaginário PELAGIANISMO mas, absolvido e sancionado o
SEMI PELAGIANISMO e pelo próprio Papa romano, ainda aqui fiel a tradição
grega não agostiniana.
Basta-nos para tanto citar a profissão de fé de Pelágio ou os fragmentos de seu livro sobre o Livre arbítrio.
Vejam o que ele havia escrito ao Papa Inocente:
"Afirmo
que possuímos uma vontade livre que é posta ou não para o pecado e que
este livre arbítrio é que leva a cabo as boas obras com o socorro da
assistência divina...
Nós atribuímos o livre arbítrio a todos os
homens sejam judeus, pagãos ou cristãos. EM TODOS OS HOMENS EXISTE LIVRE
ARBÍTRIO POR NATUREZA mas apenas os Cristãos é que obteem o socorro da
graça divina...
Os que usam corretamente o dom do Livre arbítrio adquirem a graça de Deus...
Em
minha carta ao Santo Bispo Paulino, escrita já há doze anos, havia
registrado que não podemos praticar boas obras sem o auxílio de Deus e
em minha carta ao Santo Bispo Constâncio declarei que a virtude procede
da união entre o livre arbítrio e a graça de Deus. E ainda a Virgem
Demetriades escrevi a mesma coisa sobre a boa vontade de homem e a graça
de deus."
Desafiamos qualquer pessoa a demonstrar que estas proposições foram condenadas pelo dito Papa Inocente
Protestante: Ao que parece Pelágio jamais ensinou o naturalismo crasso que se lhe atribui ou o pelagianismo propriamente dito?
Ortodoxo: Talvez
tenha sido assim mesmo. Talvez tenha se expressado equivocadamente.
Talvez tenha sido mal compreendido ou deturpado por seus seguidores. De
modo geral o Pelágio histórico que temos é Semi pelagiano e
portanto perfeitamente Ortodoxo e porta voz incompreendido da tradição
oriental, uma tradição que Agostinho jamais logrou assimilar.
A
questão aqui não foi sobre a necessidade ou não da graça ou mesmo sobre
a predestinação absoluta. O que se discutiu num primeiro momento foi a
noção de transferência de culpa, a capacidade do homem natural para
aderir a graça de Deus, o sentido do Batismo infantil e a possibilidade
de uma vida impecável para os batizados. A oposição Pelágio Agostinho deu-se antes de tudo nestes termos e a perspectiva de Pelágio como já disse foi grega, foi origenista, foi antioquena, foi oriental...
Protestante: Neste caso quais as diferenças de perspectiva?
Ortodoxo: Quanto ao pecado Original já o dissemos Agostinho vinculava-o metafisicamente a geração enquanto que para Pelágio, na esteira de Orígenes, estava relacionado com a imitação.
Havia
para além disso outra grave discordância, pois enquanto para os gregos
pena do pecado ancestral resumia-se na perda da posse de Deus para os
Latinos incluía determinados castigos.
Esta é a razão porque ambos batizavam crianças mas por motivos completamente diversos. Assim o Crisóstomo retirado de seu devido contexto por Agostinho declara que as crianças não eram batizadas para ser perdoadas de qualquer coisa e sim para serem associadas espiritualmente a Jesus Cristo, não para escapar a punições a que não faziam jus (por não terem pecados pessoais) mas para se tornar membros da igreja.
É por isso que Pelágio jamais
negou o Batismo infantil ou sua conveniência mas apenas e tão somente a
interpretação segundo a qual seu objetivo era purificar ou perdoar as
crianças de alguma culpa transmitida por Adão. Então o que se
questionava aqui não era a validade do Batismo ou sua vantagem mas sua
estrita obrigatoriedade decorrente da ideia de transferência de
culpa.... Então nos deparamos mais uma vez com a ideia de transferência
de culpa como eixo da controvérsia e foi aqui, exatamente aqui e somente
até aqui que Zozimus e seus sucessores parecem ter dado razão a Agostinho.
Para além disto acreditava Pelágio que
o homem ainda que fragilizado pelo pecado ancestral podia aderir
livremente a graça ou optar pela salvação o que pela primeira vez foi
negado por Agostinho. E ao menos neste primeiro momento a Igreja romana nada decidiu a respeito... Absolvendo Pelágio, como
já se viu acima. A ideia de uma graça interna e prévia destinada a
reativar a vontade só seria adotada por parte dos latinos no século
seguinte.
Outra discordância dizia respeito a
possibilidade do Cristão não vir a pecar e de conquistar a perfeição
neste mundo. Doutrina geralmente repudiada pelos ocidentais se bem que
jamais condenada oficialmente pela igreja romana. Para Agostinho tal
possibilidade era essencialmente utópica e impossível. Mesmo após a
regeneração a natureza permanecia fraca exercendo o pecado certo poder
de atração sobre os homens. O que os levaria a pecar ao menos
esporadicamente... Tal o ponto de partida de Lutero.
Protestante: Li em alguns autores romanos que Zosimus por meio da Tractoria reconheceu todos os decretos do Sínodo de Cartago (418).
Ortodoxo: É o que não se dá e nem se pode provar por se ter perdido a Tractoria e dela não restarem senão uns parcos fragmentos (o que evidencia jamais ter sido encarada como dogmática!). O que Zosimus certamente abençoou - contra Pelágio e os gregos - foi doutrina corrente do pecado original ou da transferência da culpa de Adão. E este foi o grande triunfo de Agostinho. A
ideia de uma corrupção total, de uma graça preveniente ou de uma dupla
predestinação não parecem ter sido assumidas pela igreja romana ao menos naquele
momento.
Daí a necessidade do Sínodo de Orange ter canonizado tais proposições no século seguinte. O que seria de todo inutil e ocioso caso o papa Zózimo ja se tivesse adiantado.